Golooooooooooooooo!
“Boa, miúda. Acabaste de dar o campeonato ao Estrela. Dá um abraço ao tio”.
Acordou enjoada e banhada em suor.
Outra vez aquele sonho, sempre à mesma hora, que lhe trazia à memória um cheiro a bagaço misturado com tabaco de mentol.
Não se lembrava de ter paz. Bastava fechar os olhos para o ver. Camisa de flanela aos quadrados, calças de ganga coçadas entrepernas, rosto ossudo, bigode amarelado pelo fumo.
A mãe, sempre a insistir com o "dá um abraço ao tio", sem perceber o porquê de a miúda ser tão “bicho do mato”, como dizia a quem assistia à cena.
O tio sempre a aproveitar as
ausências da mãe, que trabalhava de sol a sol para a sustentar a ela e
alimentar os vícios do irmão mais velho.
Muitas vezes desejou ter nascido sem braços. Tantas quantas aquelas em que se lembrou da forma como Judas denunciou Jesus Cristo. Com um beijo.
Determinada a não voltar a abraçar ou
beijar alguém, ocultou todos os traços da sua feminilidade. Cabelo à “pente 2”,
roupa larga, unhas roídas até ao sabugo.
Assim se fechou para o mundo, até ao
dia em que reparou naquele rapaz que tocava piano no bar da esquina. Espantou-a
a destreza com que percorria o teclado, usando um só braço. O único que tinha.
Interrogava-se como teria perdido o
braço, incomodada pela tranquilidade que tal facto lhe inspirava.
Esperou pelo fim da actuação e meteu
conversa. Falaram durante horas e assim foi todas as noites seguintes, até que
ele percebeu o seu medo de abraçar e a olhou fixamente nos olhos como que a
pedir-lhe que baixasse a guarda.
O desconforto inicial cedeu perante a
intensidade daquele olhar azul que a envolveu.
Naquele instante percebeu existirem
muitas formas de abraçar. Com tempo, havia de conseguir.
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