sábado, 16 de agosto de 2014

Desumano e profundamente egoísta





Desde que o estado de saúde do meu avô se agravou que não me sai da cabeça o juramento de Hipócrates.


Hoje decidi lê-lo e presumo que o maior dilema com que um médico se depara, quando as questões éticas ombreiam com os procedimentos que aprendeu na faculdade, se relacione com este pequeno excerto


"Guardarei respeito absoluto pela Vida Humana desde o seu início, mesmo sob ameaça e não farei uso dos meus conhecimentos Médicos contra as leis da Humanidade"
Juramento de Hipócrates - excerto da versão adaptada da Fórmula de Genebra e adoptada pela Associação Médica Mundial em 1983.




O que são as leis da humanidade? Até que ponto é correcto submeter alguém a procedimentos invasivos, que não desejava, sabendo que o seu estado de saúde é irreversível e os tais procedimentos só servirão para prolongar uma vida em agonia?


Foi com estas questões que nós, familiares, tivemos também de nos debater.


Encontrámos médicos que nos disseram "o paciente está lúcido e por isso, apesar de a colocação de sonda ser a única forma de o alimentar e ministrar medicamentos recuso-me a fazê-lo. Porque ele não quer. Vamos minimizar-lhe qualquer sofrimento com a hidratação possível através de soro".


E encontrámos outros que olharam para nós como se, ao recusar mantê-lo imobilizado (digam o que disserem para mim a palavra correcta é amarrado), e a gritar, estivéssemos simplesmente a deixa-lo morrer à fome e à sede.


Sendo que esta última categoria demonstrava imenso receio que nós (as loucas) os viéssemos responsabilizar pelo inevitável.


A estes só tenho a dizer que a nossa decisão foi a mais dura mas simultaneamente (e cada vez mais me convenço disso) a correcta. NOTA: refiro-me sempre ao caso concreto, pois aqui não fórmulas matemáticas que possam ser aplicadas.


Amarrar um idoso e submetê-lo a actos invasivos que só o colocam num impressionante estado de nervos, unicamente para que os cuidadores (profissionais ou familiares) sintam a sua consciência tranquila não é ético. É desumano e profundamente egoísta.


Amarrar um idoso depois da família ter dito, expressamente e mais do que uma vez, que não queria que o fizessem é um acto inqualificável.


E é por isso que hoje, assim que terminarem as cerimónias fúnebres, irei ao hospital formalizar uma exposição.


Não lhe quero chamar reclamação. O objectivo não é que punam quem o fez. Aquilo que quero mesmo é alertar a sociedade em geral, e as instâncias competentes em particular, para a necessidade urgente de dar formação a estes profissionais.


Sendo certo que estamos a falar de ética e nunca se chegará a um consenso sobre a melhor decisão, falta a capacidade de muitos profissionais (e isto sem questionar competências técnicas, entenda-se) para falar com a família, explicar os vários cenários possíveis e, no fim, respeitar a decisão tomada só Deus sabe com que custo.


Espero, sinceramente, que este meu novo objectivo de vida sirva para ajudar outras famílias.


Apesar de tudo, o meu avô faleceu em casa. Sereno e acompanhado por uma neta e pela mulher com quem casou há 60 anos, por procuração, depois de se terem visto uma só vez.


Como me disseram, por mais de uma vez, em mensagens de conforto que tenho recebido "Deus esreve torto por linhas travessas"





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